Nasci numa pequena aldeia, cujo nome apenas tem vogais e é composto por dois ditongos. Há pequenas ruas estreitas que saem das duas grandes estradas principais (as únicas e as que estão em melhor estado, tirando um ou outro buraco), as casas têm jardim, e poucas têm portões sólidos e seguros. Os animais andam pela rua, na sua maioria são vadios (perdidos nas ruas estreitas onde as pessoas colocam comida e os tratam como seus), os gatos são independentes e os cães gostam de mimo e vivem em pequenos grupos. Conheço os meus vizinhos (a verdade é que todos são vizinhos, ou da rua de baixo, ou da rua de cima), conheço as pessoas mais velhas, cresci a ouvi-las (continuam iguais, não me lembro de as ver sem rugas, sem cabelos brancos ou sem os aventais de cozinha). Os homens de café jogam à malha na estrada, eu andava de bicicleta e sonhava em ter uma casa na árvore do vizinho, (tinha tudo planeado), as senhoras vão à missa com a melhor roupa e aproveitam para pôr a conversa em dia (como somos todos vizinhos a conversa é sempre sobre quem não está presente). Não havia internet, likes ou comentários, partilhavamos aquilo que os mais velhos nos ensinavam e as dancinhas de tiktok eram a música pimba que ouvíamos e todos dançávamos ao mesmo tempo na festa da aldeia (como se tivéssemos tido treinos)..
Éramos todos diferentes mas todos tínhamos a mesma linha de educação: estudar para ser alguém, “se não queres, vai trabalhar para ver o que a vida custa!” (as palavras vinham dos mais velhos e não variavam muito). No final do dia começavam as comparações daquilo que o outro fez, as notas que tirou ou o silêncio que se fazia ouvir da outra casa (tenho a certeza que era, ou ainda é assim em todo o lado). As meninas eram pequenas sonhadoras, fantasiavam com uma boa vida, queriam trabalhos perfeitos e uma família feliz. Os meninos brincavam e sabiam desde cedo onde queriam trabalhar, alguns estudaram, outros seguiram o exemplo dos pais. Eramos conhecidos e bons em alguma coisa em particular. Lembro-me de fingir que sabia ler e inventava as histórias mais engraçadas com o livro aberto, enquanto folheava.
Alguns de nós ficaram e continuam a ser tudo isto, realizaram sonhos, já são pais, têm um trabalho estável e uma família feliz. Os mais “atrevidos” (considero que ser pai e independente, hoje, também é um atrevimento), foram para longe, encontraram novos amigos e uma outra realidade. A verdade é que sair não é fácil, sair de onde nos conhecem e passar a viver como desconhecidos, passar a ser igual a tantos outros que andam de metro às 7 horas da manhã. A adaptação custa, mas para aqueles que querem ser o centro das atenções (que querem influenciar e serem famosos na cidade grande) é uma luta a duplicar. Não o são! Aquilo que os diferenciava na aldeia é agora igual a tantas pessoas na cidade, não são diferentes, são apenas mais uma pessoa a carregar o andante ou a encher o depósito do carro.
Dizem que o ser humano tem uma capacidade invulgar de se adaptar, mas a verdade é que nem todos. Algumas pessoas acompanham a evolução do mundo e o seu próprio crescimento, outras não. Há um medo do desconhecido que nos paralisa na sabedoria de um adolescente e não avança para o raciocínio de um adulto. Talvez medo não seja a palavra certa, há só apenas quem não se interesse, quem não queira evoluir porque nunca se questionou sobre nada. Assusta-me olhar para o lado e perceber que há quem não se pergunte: “o que sou?; o que quero ser daqui a 10 anos?; como quero estar na vida daqui a 10 anos?; o que quero fazer?; em quê que vou trabalhar?; que amigos quero ter nessa altura?; o que posso fazer hoje para conseguir que a minha vida melhore?; o que posso fazer hoje para ter, o que quer que seja que quero, no futuro?” Não vejo ambição e não sei se me rodeio pelas pessoas que não a têm, se é simplesmente geral. Há um conformismo na sociedade em relação a tudo. Olhamos para as notícias e vemos o preço dos bens essenciais, em valores arrepiantes (nós precisamos comer, mas agora nem um pão ao pequeno almoço), vemos casos de corrupção e apenas nos revolta, não fazemos nada (roubaram milhões e continuam, porque ou estão presos e nós pagamos ou estão a receber reformas do estado e nós pagamos), vemos injustiças nos tribunais “Tribunal da Relação de Évora entende que carícias por baixo da roupa a alunas de sete anos não são crimes de abuso sexual”- CNN (esta notícia não é de um outro século, data o dia 13 de junho de 2022) e no final da semana ouvimos música pimba e tentativas de piadas feitas na televisão portuguesa e está tudo bem. Não é cultural ignorar o óbvio (tem outro nome, acreditem!)
As redes sociais vieram dar mais sonhos às meninas que fantasiam a sua vida na aldeia e mostrar que há mundo aos meninos. Mostraram a grandiosidade do mundo e que afinal somos todos iguais nesta bolha social, no fundo nem a famosa, da cidade pequena, é tão diferente assim. Contudo, também nos mostra que os irreverentes não têm espaço na sociedade, que ser realmente diferente é um atrevimento mal aceite e, às vezes, mal interpretado, continuam a haver comentários no “fim da missa” (como na aldeia), mas nas redes sociais e os vizinhos são os seguidores, em contrapartida, desta vez falam entre si sobre quem está, quem vê, mas atrás de um ecrã (por isso não deve ser tão grave assim- ironia).
Apesar de tudo isto, continuo a gostar de ver rapazes a maquilharem-se, influencers a venderem produtos sexuais, mulheres a abordarem temas tabus e todos a vestirem-se como realmente querem, para a foto ou não.
A liberdade começa na aldeia, na decisão que tomas, em sair ou não e prolonga-se ao longo das tuas opções e das perguntas que te fazes, a liberdade permite-te crescer, abrir horizontes e viver. Tira proveito dos ensinamentos da aldeia, da cidade grande, do mundo das redes sociais e constrói uma personalidade consistente, ambiciosa e adulta.